Sapato de pau vira Livro

DIALETO ETERNIZADO

Sapato de pau vira Livro

Após duas décadas de estudo, língua trazida por imigrantes germânicos ganha dicionário inédito. Publicação lançada nesta semana se torna marco cultural e transforma Westfália em guardiã do idioma ancestral

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Sapato de pau vira Livro
Vale do Taquari

Na Alemanha do século 19 havia uma comunidade, situada ao norte, que falava um dialeto distinto. A língua se diferenciava do alemão, tinha semelhança com o holandês e estreita ligação com o inglês. Para se proteger do frio e da umidade, esses habitantes usavam calçados feitos integralmente de madeira. Por isso a língua deles ficou conhecida como “Plattdüütsk”, na tradução: “sapato de pau”.
Foram esses imigrantes alemães de Tecklenburg que chegaram ao Vale do Taquari em 1868, época em que a região era conhecida como “Colônia Teutônia”. Aqui instalados, desbravaram as matas para produzir alimentos, fundaram comunidades religiosas e escolas, tudo falando o sapato de pau.
Mais de 150 anos se passaram e, embora o português tenha se oficializado nessas regiões, há ainda muitos moradores que mantêm o hábito de se comunicar verbalmente pelo Plattdüütsk.
Em iniciativa inédita do município de Westfália, o sapato de pau ganhou livro com mais de 6 mil palavras traduzidas para o alemão e o português. Agora, além de ser falado, o dialeto trazido pelos antepassados do norte da Alemanha também poderá ser escrito.

Danças e apresentações musicais marcaram lançamento do dicionário na noite de quarta-feira

Danças e apresentações musicais marcaram lançamento do dicionário na noite de quarta-feira

Duas décadas de pesquisas

Pesquisador Lucildo Ahlert é responsável pela elaboração do Dicionário da Língua Westfaliana Brasileira, com coautoria do Grupo Amigos do Sapato de Pau. Conforme ele, o livro é planejado desde 1997.
O trabalho para resgatar antigas palavras usadas pelos imigrantes contou com visitas às regiões alemãs de Osnabrück e Tecklenburg, além de pesquisa em publicações com mais de dois séculos. “Achamos um livro em uma universidade americana de 1748. Naquela época, já havia essa preocupação de preservar o idioma”, relata Ahlert.
Conforme o autor, o livro terá palavras resgatadas dos antigos colonizadores e criações feitas pelo Grupo Amigos do Sapato de Pau, no caso de vocábulos que descrevem objetos inexistentes na época da migração.
Cita como exemplo o celular que, no dialeto westfaliano, será chamado de “Schlaunfone” (telefone inteligente), em uma mistura do inglês com o alemão.
A publicação tem 498 páginas e conta com a tradução em duas ordens: Plattdüütsk/Alemão/Português e Português/Alemão/Plattdüütsk. Também concentra histórias da migração e criação de Westfália, hino do município traduzido ao sapato de pau e textos na língua westfaliana brasileira.
Para o pesquisador, o dicionário irá proporcionar o uso do sapato de pau em livros e evitar o fim nas próximas gerações. “Se o sapato de pau sobreviveu 150 anos, deve ter algo interessante. É nossa missão mantê-lo vivo”, ressalta.
A administração municipal de Westfália imprimiu 500 exemplares. Moradores podem retirar o dicionário (um por família) na Biblioteca Pública Municipal, a partir de segunda-feira, 9. Haverá distribuição em prefeituras de outros municípios.
Interessados em adquirir o dicionário podem entrar em contato com a administração municipal de Westfália pelo 3762-4553 ou com Ahlert, pelo 3714-4652.

Grupo Amigos do Sapato de Pau e pesquisador Lucildo Ahlert (d) dedicaram mais de 20 anos para planejar dicionário da língua westfaliana brasileira

Grupo Amigos do Sapato de Pau e pesquisador Lucildo Ahlert (d) dedicaram mais de 20 anos para planejar dicionário da língua westfaliana brasileira

Próximos passos

O lançamento do dicionário ocorreu na quarta-feira, 4, na Casa da OASE, em Westfália. Fez parte da programação da XI Feira Municipal do Conhecimento e contou com a presença da secretária estadual de Cultura, Beatriz Araújo, e cônsul da Alemanha no RS e SC, além de membros da Academia Literária do Vale do Taquari (Alivat).
Utilizando expressões de arte, como a música e dança, a cultura westfaliana foi evidenciada pelo Coral Municipal e Grupo de Danças Folclóricas Alemãs Westfälische Tanzgruppe.
As soberanas do município (rainha Natália Spellmeier, 1ª princesa Taís Pott Rückert e 2ª princesa Letícia Deconti Fabrin) trouxeram mensagem no português, alemão, sapato de pau e italiano. Outro ponto importante foi a apresentação do hino municipal de Westfália em Plattdüütsk pelo Grupo Amigos do Sapato de Pau.
Durante a cerimônia, autoridades destacaram o marco histórico representado pelo lançamento do dicionário. Westfália se torna guardiã do Plattdüütsk e já tem o dialeto como língua cooficial desde 2016.
O próximo passo, segundo o prefeito Otávio Landmeier, será elaborar a parte gramatical da língua westfaliana brasileira.
“Ainda não chegamos ao fim. Temos outros desafios para manter a cultura do sapato de pau”, concluiu.
12_AHORAO lançamento do Dicionário da Língua Westfaliana Brasileira foi uma promoção da administração municipal em parceria com a Alivat.

Onde se fala o sapato de pau?

A primeira palavra dita por Hugo Pott, 63, foi em sapato de pau. O morador de Linha Berlim, em Westfália, só aprendeu português aos sete anos, quando começou os estudos na Escola Olavo Bilac.
Até hoje, em casa, Pott só fala o dialeto. “Tem ferramentas que nem sei o nome em português”, comenta. Na comunidade, ressalta, a maioria das famílias ainda preserva a língua trazida da Alemanha. “Pena que os jovens estão perdendo o costume por causa da TV”, lamenta.
Inexistem pesquisas sobre a quantidade de pessoas que usam o sapato de pau, entretanto, Ahlert cita redutos onde o dialeto ainda predomina. Em Westfália, por exemplo, estima que mais de mil habitantes são adeptos da língua.

FÁBIO KUHN – [email protected]

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