Ainda lembro bem daquele carnaval

Carnaval

Ainda lembro bem daquele carnaval

Nas décadas de 1970 e 80, o carnaval de Lajeado viveu sua época de ouro. As escolas de samba desfilavam na rua Júlio de Castilhos, que ficava completamente lotada nas duas calçadas. Vinha gente de toda a região. Sambistas de Porto Alegre reforçavam as escolas. Quase 40 anos depois, foliões recordam histórias dos bailes e desfiles que marcaram a cidade.

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Ainda lembro bem daquele carnaval
Vale do Taquari

Houve um tempo em que os verões de Lajeado eram marcados pela preparação dos desfiles de carnaval. A gurizada deixava de ir à praia para se enfiar em barracão e fazer carro alegórico. Casas viravam ateliês. Famílias inteiras se envolviam nas tarefas.

Meses antes da folia de momo, iniciava uma mobilização para arrecadar dinheiro para fantasias e carros alegóricos. As escolas organizavam festas, jantares e gincanas. Ensaios abertos, com venda de bebidas, também contribuíam com o custeio.

No dia dos desfiles, a rua Júlio de Castilhos ficava totalmente lotada. Ao longo da via, era impossível transitar nas calçadas. O público vinha de toda a região, trazia cadeiras, e esperava para ver passarem Cascata, Soreba, Explode Coração, Deixa Sambar, entre outras. O Bloco dos Palhaços era presença confirmada, com suas sátiras de temas atuais da época.

A concentração era na rua Tiradentes e as agremiações desciam a Júlio desfilando até a praça. O desfile era completo: samba enredo, abre-alas, carros alegóricos, bateria, ala de baianas, velha guarda, casal de mestre sala e porta-bandeira e uma peculiaridade do carnaval gaúcho: porta-estandarte.

O surgimento das escolas foi influenciado pelo bloco Maracangalha, criado em 1957. O carnaval de Lajeado viveu seu auge da metade da década de 1970 até meados da década de 1980. Destaques do carnaval de Porto Alegre vinham a Lajeado reforçar as equipes das escolas. Nesta época, o carnaval de Lajeado chegou a ser o terceiro mais importante do estado, atrás apenas de Porto e Alegre e Uruguaiana.

Em 1986, ocorreu o último desfile daquele ciclo. Na década de 1990, os desfiles foram retomados, mas sem tanta repercussão e envolvimento da comunidade. Durante alguns anos, foram realizados no Parque dos Dick. Em 2019, os desfiles oficiais não foram realizados na cidade. Para este ano, há apenas algumas iniciativas descentralizadas de blocos.

Os jovens foliões daquele tempo são hoje profissionais, empresários, juízes, diretores de empresas. Daqueles carnavais, restaram memórias e muitas histórias a contar.


Suzana Trentini carregou estandarte e bandeira do Maracangalha e Cascata. Créditos Arquivo Pessoal Suzana Trentini

Rivalidade e trajes mínimos

Suzana Trentini nasceu em 1957, mesmo ano da fundação do Bloco Maracangalha. Aos 15, tornou-se porta estandarte da agremiação. Alguns anos depois, passou a integrar a então recém criada Cascata. Nunca desfilou em ala, sempre levando estandarte ou bandeira.
Entre todas as escolas, misturavam-se grupos de amigos e casais. O que não significa que não houvesse rivalidade.

“Quando, por exemplo, alguém do Cascata passava para o Soreba, meu deus. Era virar casaca, igual time de futebol”
Suzana recorda de um ano em que os integrantes do Maracangalha causaram rebuliço na comunidade lajeadense ao desfilarem seminus no carnaval. Meninas, apenas de biquínis prateados, meninos de shortinho e colete. O que, para os desfiles de hoje, poderia ser considerado traje excessivo, na época, chocou algumas pessoas.

“Meus pais sempre foram super liberais. Minha mãe fez o meu biquíni. Quando meu pai viu, ele quase teve um troço. O ‘Maraca’ sempre foi à frente do tempo.”
A posição de porta estandarte era lugar de destaque nas escolas. A maioria trazia gente de escolas da capital, com mais conhecimento e, assim, Suzana nunca vencia. “No último ano do carnaval, eu fui para a raia, nem fiquei para esperar o resultado. Neste ano eu ganhei”, recorda.


Um tombo em frente aos jurados

Em um dos anos em que desfilou à frente da Cascata, Suzana passou por um dos momentos menos desejados por uma porta bandeira. Quando passava em frente aos jurados, a ponta da sandália engatou na armação da saia.

Enquanto caía, foi salva pelo companheiro, o mestre sala Paulinho Durão, da Restinga, que a segurou antes que chegasse ao solo.
“Eu fiquei sem saber o que fazer e o Paulão, que era irmão dele, disse: ‘gira, gira, gira’.  O público nem notou, mas os jurados viram e eu perdi pontos. Foi muito engraçado”, lembra.


Desde bem novo, Maurel Lenz tocou o surdo da Deixa Sambar. Créditos Arquivo Pessoal Maurel Lenz

Quando a turma virou escola

Engana-se quem imagina desfiles simplórios e com pouco luxo. Há quem diga até que as escolas de Lajeado possuíam alegorias mais elaboradas que as da capital.

“O Deixa Sambar tinha uma bateria muito boa e muita criatividade na confecção dos carros alegóricos. Na época, a gente já colocava luzes nos carros. Tivemos até alegorias que se movimentavam”, recorda o empresário Maurel Lenz.
Ele participou da escola desde bem novo, tocando surdo na bateria. Lenz destaca a amizade que uniu os foliões a criarem as escolas e que, em muitos casos, permanece através do tempo.

“Todas as escolas aqui da cidade se originaram de grupos de amigos. Muitos são amigos até hoje. Era muito legal porque a gente vivia em turma e movimentava essa turma o ano todo, não só no carnaval.”


Herança de carnaval

Quem também tem o Cascata correndo pelas veias é o empresário Roberto Munhoz Leal, 38, o Bebeto. Sobrinho e afilhado de Marco Aurélio Munhoz, o Keko, um dos fundadores da Cascata, Bebeto viu a escola nascer na casa de seus avós e cresceu acompanhando seus desfiles.

Quando adolescente, o Cascata já não desfilava, então Bebeto teve a ideia de montar um bloco a partir da escola de samba. “Com o tempo, começamos a misturar a bateria junto do bloco e todos adoraram, se tornou o diferencial”. Hoje o Cascata é formado por cerca de 200 pessoas.

Entre elas, 30 compõem a bateria que segue o mestre Bebeto, função herdada do padrinho Keko.
Entre as muitas histórias que lhe marcaram, Bebeto recorda da apresentação feita em 2001, ocasião em que o bloco voltou a ser escola de samba para resgatar a tradição. Com um samba enredo sobre o jubileu da Cascata, tudo foi feito de última hora, recorda.

Durante 30 dias, a casa de Keko foi usada de barracão para confecção dos carros alegóricos e adereços. “Virávamos a madrugada colando lantejoulas. Lembro do pessoal dormindo lá e o Keko chegando do trabalho com cacetinho e salsichão para jantarmos”. O esforço valeu a pena, e mais uma vez a Cascata foi campeã do Carnaval de Lajeado.

Para Bebeto, o carnaval é um momento para promover cultura e diversão. “Desejo que as próximas gerações abracem esta festa popular e contribuam para resgatar o carnaval de Lajeado. Temos uma longa história, só está adormecida. Tem muita gente aqui que gosta do carnaval”.


Coisa de família

O carnaval está na família de Miriam Munhoz Scherer, 64, desde a adolescência. Suas lembranças mais bonitas da data são os pais desfilando com o Cascata. “Meu pai na comissão de frente, lindo, e minha mãe arrasando de baiana”.

A professora aposentada é irmã de um dos fundadores da Cascata, o Keko. Nascida em Porto Alegre, Miriam mudou-se para Lajeado quando tinha apenas seis meses, e aqui morou até os 18 anos.

Mesmo depois de se mudar para a capital, Miriam continuou a visitar Lajeado para prestigiar o carnaval e as apresentações do Cascata, incentivada pelo irmão. “Marcavam o ensaio e o Keko já nos avisava, então vinhamos no fim de semana para as crianças se divertirem. Assim começou o amor dos meus filhos pelo Cascata também”. Hoje o filho mais velho, Mauro, toca na bateria do Cascata e é companhado nos ensaios pelas filhas Luiza e Laís.


Couros furados

O engenheiro civil Humberto Roos, o Betinho, viveu esta rivalidade. Um dos fundadores da Sociedade Recreativa Batutas, a Soreba, ele é casado com Goia Munhoz, que era do Cascata. No ano em que começaram a namorar, o pai da moça proibiu que ela desfilasse em qualquer escola.

Em outra edição, ele conta que a Soreba teve todos os instrumentos de couro furados por um concorrente. Os integrantes tiveram que correr a Porto Alegre, na tradicional loja Valcareggi, na Cidade Baixa, para comprar novos couros. “O mais difícil sempre foi a bateria, porque aqui não temos essa tradição. Nós criamos vínculos com escolas de Porto Alegre. Queríamos ser grandes como eles. O ensaiador do Imperadores do Samba foi nosso ensaiador.”

A partir do início dos anos 80, as escolas se tornaram mais luxuosas e os desfiles, mais caros. Roos estima que, em valores atualizados, os desfiles custassem cerca de R$ 500 mil. O alto custo veio junto com a evolução e a sofisticação do carnaval e foi um dos fatores que culminou na interrupção da festa em 1986.
Outro aspecto é que os integrantes amadureceram, constituíram família e trabalho e acabavam tendo menos tempo para se dedicar às escolas.


Daniela Porto quando foi convidada a ser rainha do Bloco Cascata, em 2011. Hoje, o Cascata é como uma segunda família para a rainha

Memórias de uma rainha

“Só quem está ali, com a bateria, entende o amor e o frio na bariga quando ela começa a tocar. É um momento único”. A maquiadora e bacharel em direito Daniela Porto, 31, é a rainha da bateria do Cascata há nove anos. Tudo começou quando uma amiga a convidou para participar de ensaio, em 2011. “Cheguei e me deparei com uma bateria ensaiando. Achei o máximo pois nunca havia visto e, quando percebi, estava sambando. Meu amor pelo carnaval surgiu deste primeiro encontro”.

O papel da rainha de bateria é transmitir a mensagem do enredo desenvolvido pela bateria, conta Dani. “Procuramos transmitir amor, paz e emoção. Que as pessoas possam sentir o arrepio que sentimos todas as vezes que nos encontramos e fazemos o som acontecer”.
O Cascata é como uma sua segunda família para Daniela. Os ensais ocorrem no Clube Tiro e Caça, entre janeiro e fevereiro, uma vez por semana. “É um ambiente democrático e para todas as idades. É muito bonito ver as crianças querendo tocar e dançar. É o retorno que temos do amor que transmitimos através das apresentações”.

Daniela lembra de muitos momentos marcantes ao lado do Cascata, mas um em especial a marcou logo no início da trajetória. No primeiro ano com a escola, era tímida e nunca havia desfilado. No dia da apresentação, a rainha se atrasou e, quando chegou, a bateria já estava tocando. Quando a viram, os músicos calaram os instrumentos e por um momento, a bateria do Cascata silenciou. “Então todos começar a gritar “a rainha chegou” e a tocar de forma ainda mais alegre”. A amiga Cassia Borba, responsável por levar Daniela ao primeiro ensaio, emocionou-se. “Ver os olhos dela cheios de lágrimas só reforçou como aquele momento foi especial e indescritível para mim.”


Se o bloco não sai, saímos nós

No verão de 1976, um grupo de adolescentes de 14, 15 anos decidiu criar uma escola de samba. A ideia depois que o tradicional desfile do Bloco Maracangalha não saiu. Faltava uma folia no período carnavalesco. No dia 5 de fevereiro, na esquina das ruas Tiradentes e 15 de novembro, no bairro Florestal, foi criada a Escola de Samba Cascata.

A escola foi formada por um grupo de amigos, associados do Clube Tiro e Caça. Entre eles, Marco Antonio Bald, Carlos Schoroeder, Paulo Zart, Luis Eitos, Antenor Spech, Alexandre Gravina e Marco Aurélio Munhoz, o Keko.
De azul e branco, a agremiação chegou a desfilar com mais de 500 pessoas, 50 integrantes na bateria e quatro carros alegóricos. Munhoz destaca o caráter popular da escola.

“Apesar de a grande maioria dos integrantes serem associados do Tiro e Caça, a escola tinha um caráter popular. Sempre se caracterizou pela bateria nota 10. Nos anos que nao tinha muito recurso para fantasia e adereço, a gente saia com o samba no pé”, recorda Keko.
De acordo com Munhoz, a escola venceu os carnavais de 1978, 80, 81, 85 e 86.

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